BIOGRAFIA - ESCRITOS

• A CORRESPONDÊNCIA

Carta de JUANITA a seu irmão Lucho.

Juanita escreveu esta carta a seu irmão Lucho quando este soube que ela ia a entrar no Carmelo.

Cunaco, 14 de abril de 1919

Meu querido Lucho:

Soube por mamãe que já não te é desconhecido meu segredo. Perdona-me não ter tido força de o confiar-te antes: porém, sabia o muito que te ia impressionar e queria te poupar o mais possível a tristeza que ias sentir quando estivesses a par de tudo.

Se por um instante pudesses penetrar no íntimo de meu pobre coração e presenciar a luta horrível que experimento ao deixar os seres que idolatro, terias compaixão de mim. Mas Deus o quer, e, mesmo se fosse necessário atravessar o fogo, não retrocederia; pois o que tanto anseio não só proporcionará a felicidade nesta vida, mas a de uma eternidade.

Creio que tu mais que ninguém poderás compreender que existe na alma uma sede insacíavel de felicidade. Não sei por quê, mas em mim a acho duplicada. Desde criança a tenho buscado, mas em vão, porque em todas partes só vejo sua sombra. E esta pode satisfazer-me? Não. Jamais. Parece-me que tenho me deixado seduzir. Desejo amar, mas algo infinito, [e que] este Ser que eu ame não mude e seja o joguete de suas paixões, das circunstâncias do tempo e da vida. Amar, sim: porém o Ser imutával, Deus, que tem me amado infinitamente desde a eternidade. Que abismo há entre esse amor puro, desinteressado e imutável e o que me pode oferecer um homem! Como amar um ser tão cheio de misérias e de fraquezas? Que segurança posso encontrar nesse coração? Unir minha alma a outro ser que não me aperfeiçoe com seu amor? Achas que pode apresentar-me nobres perspectivas? Não. Em Deus encontro tudo o que nas criaturas não encontro, porque são demasiado pequenas para que possam saciar as aspirações quase infinitas de minha alma. Me dirás porém que podes amar a Deus vivendo no meio dos teus. Não, meu Lucho querido, N. Senhor nada reservou para Si ao amar-me desde o madeiro da cruz. Ainda deixou seu Céu, eclipsou sua divindade, e eu me tenho de entregar pela metade? Acharias generoso de minha parte reservar-me àqueles a quem estou mais ligada? Que Lhe ofereceria então? Não. O amor que Lhe tenho, Lucho querido, está acima de todo o criado; e mesmo pisoteando meu próprio coração, despedeçado pela dor, não deixaria de dizer-lhes adeus, porque o amo com loucura. Se um homem é capaz de enamorar a uma mulher até o ponto de ela deixar tudo por ele, não crês acaso que Deus é capaz de fazer irresistível seu chamamento? Quando se conhece Deus, quando no silêncio da oração ilumina o entendimento com sua sabedoria e seu poderio, quando inflama a vontade com sua bondade e misericórdia, se olha tudo da terra com tristeza. E a alma, amarrada pelas exigências de seu corpo, pelas exigências do ambiente social em que vive, se encontra desterrada e suspira com ardentes ímpetos por contemplar sem cessar esse horizonte infinito, que, à medida que se olha, se alarga sem jamais encontrar limites em Deus.

Lucho querido, se soubesse a amargura que encontro em tudo o que me rodeia, não te assombrarias que buscasse as paredes de um convento para viver e passar minha vida inteira em oração não interrompida pelo bulício do mundo. Não podes compreender por enquanto, porém eu rogarei a Deus para que se manifeste um dia a ua alma, como por sua infinita bondade se manifestou à minha. Então verás que é impossível não sofrer horrivelmente quando a alma se encontra com obstáculos que a impedem de ficar constantemente na contemplação amorosa do todo adorado. Vivendo no meio dos meus, isto é impossível. As preocupações da vida o impedem, ainda que se tenha a liberdade mais completa.

Lucho tão querido, falo-te de coração a coração. Nesse instante, experimento toda a dor da separação. Amo-te como nunca. Poucos irmãos eistiram tão unidos como nós dois. Sem dúvida, digo-te adeus. Sim, Lucho de minha alma. É preciso que eu te diga esta palavra cruel por um lado, porém não se se considera quando ela diz: "A Deus". Lucho querido, ali viveremos sempre unidos. Em Deus te dou eterna morada.

Tua carta que recebi há pouco, quando tinha começado esta, me tem feito sofrer muito. Acusas-me de falta de confiança, irmão mais querido. Se eu te disser que muitas vezes estive a ponto de dizer-te, não me crerás. Porém me reprimia pelo temor do muito que ias sofrer e temia por tua saúde. Assim, perdoa-me não ter tido a força de dizer-te, mas foi por excesso de carinho.

Lucho, não sabes quanto te agradeço por teu carinho. Verdadeiramente acho que não o mereço; porém, crê-me que eu te quero duplamente. Com delírio. Imagina que não só deixo a ti mas também os dois seres que idolatro: meu pai e minha mãe. E sem dúvida vou deixá-los por Deus. Tenho pensado muito e refletido, e não quero voltar atrás, porque sende carmelita realizarei todo o ideal de felicidade que tenho forjado para mim. Se ficasse no mundo, não teria todo o bem que tu me dizes, porque a virtude é uma planta cuja seiva é a graça de Deus. Sem ela a virtude perece. Diz-me sinceramente, crês que Deus me ortogará se eu não for fiel em segui-lo? Se Ele me tem dado já o valor para sacrificar-lhe tudo por seu amor, eu não devo deixar de ser generosa. Além disso, que favor maior que o da vocação? E depois de tanto amor de Deus para com uma criatura miserável eu ficaria em minha casa, no meio de todos os que amo e das comodidades? Por um homem a tudo se renuncia, e por Deus nada se aceita!

Se tu, querido Lucho, tivesses me visto casar com um jovem bom que não tivesse tido fortuna e me tivesse levado ao campo longe de todos vocês, tu te haverias conformado. E porque é por Deus tu te desesperas? Quem pode me fazer mais feliz que Deus? Nele tudo encontro. Agora diz-me: que abismo insondável há entre Deus Todo-poderoso e a criatura? Ele não se incomoda de descer até ela, para uni-la a Si e divinizá-la. E eu ei de desdenhar a mão do Todo-poderoso que em sua grande bondade me detém? Não. Jamais. Nada pode convencer-me de que meu dever não é seguir a Deus sacrificando tudo para pagar-lhe seu infinito amor como melhor possa. O resto será baixeza de minha parta. Creio que julgarás como eu.

Quanto ao que me dizes, que a glória de Deus não ganharia nada se todos entrassem nos conventos, te dou razão. Porém deves acrescentar que nem todos os bons são chamados por Deus para ser religiosos. Há almas em quem infunde o atrativo da perfeição, e estas faltam se não se entregam a ela. É certo no mundo que se necessita de almas virtuosas, e hoje mais que nunca é de absoluta necessidade o bom exemplo; porém, para permanecer no mundo é indispensável ter especial assistência de Deus. Eu me considero sem forças para isso, porque Ele não pede. Porém, a maior é a necessidade de almas entregues completamente ao serviço de Deus, que o louvem incessantemente pelas injúrias que no mundo se lhe fazem; almas que o amem e lhe façam companhia para reparar o abandono em que o deixam os homens; almas que roguem e clamem perpetuamente pelos crimes dos peadores; almas que se imolem no silêncio, sem nenhuma ostentação de glória, no fundo dos claustros pela humanidade deicida. Sim, Lucho, a carmelita dá mais glória a Deus que qualquer apóstolo. Santa Teresa, com sua oração, salvou mais almas que São Francisco Xavier, e fez esse apostolado desconhecendo-o. Diz-me que devo empregar para sua glória as qualidades com que Deus me dotou.

Sim, como me dizes, é certo que as tenho. Como poderei dar maior glória a Deus senão dando-me inteiramente a Ele e empregando dia e noite minhas faculdades, tanto intelectuais como morais, em conhecê-lo e amá-lo? Não possuo a formosura e se a possuísse não duvido que a ofereceria também, porque o melhor e mais formoso é Ele que o merece.

Poderás detestar a religião, Jesus Cristo, quando é ela, Ele que me proporcionam a felicidade nesta vida e na outra? Que desespero teria tomado meu coração ao encontrar o vazio, o nada das criaturas, se não tivesse conhecido outro Ser capaz de saciar-me e satisfazer-me! Não. Jamais o crerei, Lucho de minha alma, porque sei que em tua alma as crenças religiosas descansam sobre base sólida. E se isto, por desgraça, chegar a suceder, eu te digo que [desde] este instante conjuro a Deus para que me mande antes a morte, para que do sacrifício brote para ti a luz e o amor para com nossa religião.

Além disso, quem pôs em minha alma o germe da vocação foi a Ssma. Virgem. E tu fostes aquele que me ensinou a amar a esta terna Mãe, que jamais tem sido invocada em vão por seus filhos. Ela me amou, e não encontrando outro tesoro maior que dar-me em prova de sua singular proteção deu-me o fruto bendito de suas entranhas, seu Divino Filho. Que mais poderia me dar?

 Lucho, antes de partir, deixo-te como selo de nossa perpétua fraternidade a estátua da Ssma. Virgem, que tem sido minha companheira inseparável. Ela tem sido a confidente íntima desde os mais ternos anos de minha vida. Tem escutado a relação de minhas alegrias e tristezas. Tem confortado meu coração tantas vezes abatido pela dor. Lucho querido, deixo-te para que me substituas perto de ti. Fala com Ela como fazes comigo, de coração a coração. Quando te sentires só, como eu muitas vezes tenho-me sentido, olha-a e verás que sorrindo te diz: "Tua Mãe jamais te deixa só." Quando, triste, e desolado, não tiveres com quem desabafar, corre a sua presença e o olhar choroso de tua Mãe dirá: "Não há dor semelhante a minha dor." Ela te confortará, pondo em tua alma a gota do consolo que cai de seu dolorido Coração.

Eu, desde minha solitária cela, rogarei por ti a essa Virgem quase idolatrada, para que se mostre como verdadeira Mãe com aquele irmão que tanto amo. Unidos pelo pensamento aqui na terra, nossas almas irmãs se encontrarão, depois desta existência dolorosa, um dia reunidas para sempre lá no Céu. Então compreenderemos o mérito da separação neste desterro, que nos tem ganhado a comunhão eterna lá na pátria, onde está a vida verdadeira.

Lucho, só me resta uma coisa a dizer-te. Se me tivesse enamorado de um jovem com quem cresse ser feliz e não tivesse sido do teu agrado, não teria duvidado um momento em sacrificar por ti minha felicidade, porque te quiero demasiado. Porém, não se tratando de um homem, mas de Deus, e comprometendo eu não só a felicidade temporal mas a eterna, não posso voltar sobre meus passos. Perdoa-me toda a tristeza que com minha determinação te tenho causado. Tu me conheces e poderás compreender melhor que ninguém a dor em que estou submersa, dor tanto maior quanto vejo que sou eu a causa do sofrimento dos seres que amo tanto.

Deixa-me dizer pela última vez adeus. Escapa de minha alma um soluço. Adeus, meu irmão tão querido. Sê bom. Enche tu, com o carinho para com meus pais, o vazio que vai deixar em seus corações a oferenda de uma filha que, ainda que pouco valha, é enfim um pedaço de suas almas. Ama-os e evita-lhes todos os sofrimentos. Sê bom também com minha querida Rebeca! Pobrezinha! Quanto sinto deixá-la abandonada, porque sempre a acompaharei com minhas orações. Acompanhem-se ambos e ajudem-se mutuamente no caminho do bem.

Lucho querido, adeus! Tem coração generoso e oferece-me a teu Deus e à Ssma. Virgem. Eles vão fazer a felicidade de tua pobre irmã. O bom e formoso sempre custa lágimas. A vida que abraçarei tem essas qualidades, porém se compra com o sangue do coração. Deus te premiará, porque nunca se deixa vencer em generosidade. Sobretudo pensa que esta vida é tão curta: já sabes que esta vida não é a vida.

A Deus, irmão querido. Te abraça e beija tua Juana, que muito em breve se chamará Teresa de Jesus.

Juana.

(Carta n°81, tradução © Edições Loyola)

 

 

Haut de page